(...) Desenfaixaram minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,

No entanto sou a mesma, idêntica mulher. (...)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Andava chorando, hoje não mais.


Ela acordou, mas já era tarde. Oito horas da noite, para ser mais exato.
Vestígios de pensamentos lhe diziam que antes de deitar-se, no dia anterior, tinha resolvido pedir a Deus alguma ajuda, mas terminou por dormir no meio da oração.
Girou na cama e sentiu o corpo doer, “Céus! Como tinha dormido por tanto tempo?”.
Levantou-se, meio tonta, o corpo mais dolorido agora pela mudança brusca de posição; sentou-se na cama e calçou os chinelos.
Um barulho alto a fez dar um pulo no escuro e empurrar com o pé um dos chinelos para baixo da cama: era o celular despertando... Hora da medicação.

- Não sei por quanto tempo ainda vou tomar essas drogas, de nada adiantam. – Enquanto tomava os comprimidos e falava sozinha notou algo estranho na parede logo à frente.

- É só o seu reflexo, criatura estúpida. Agora volte pra cama.

O reflexo no espelho pareceu sorrir na penumbra. O quarto, iluminado apenas pelas luzes externas que chegavam pela janela sem cortina, parecia envolto agora numa névoa estranha.
Parada, ainda com o copo d’água na mão, ela virou-se para o espelho e cuspiu com raiva esperando alguma reação.

Não aconteceu nada.
Feliz com a falta de atitude do seu reflexo deixou o copo no criado mudo e sentou na cama. Estava prestes a deitar-se quando se deu conta de que a sua imagem não cuspira, ou pelo menos foi o que parecera.
Levantando num salto foi para frente do espelho, pendurado na parede de forma a mostrar somente metade do corpo e ficou contemplando seu rosto um longo tempo. Tudo parecia normal. Os movimentos precisos, os lados invertidos...

- Esses remédios estão me deixando louca ao invés de me deixar normal.

Convencida de que não passara de uma alucinação, já ia afastando-se do espelho, quando ouviu um sussurro. Um murmúrio baixo, vindo do ar ao seu redor:

- Há quanto tempo você não chora?

- O quê?

Silêncio.

Ela ouvira bem a frase; a pergunta fora articulada com uma dicção perfeita. Embora o tom da voz fosse baixo, ela entendeu perfeitamente, escutou nitidamente: há quanto tempo não chorava?
Não sabia dizer.
Talvez uma semana? Não. Mais que isso. Muito mais.
Estava triste há dias, meses, sentia-se mal, voltara aos velhos hábitos. Mas antes chorava, e agora não.

Parada no escuro do quarto, ela vasculhou a mente e pôde notar que nas últimas semanas não se sentia só triste, mas era uma tristeza vazia, totalmente sem sentido. Era ausência de qualquer coisa que pudesse estar lá antes. Ela não se lembrava o que estava lá antes. Talvez fosse ela mesma. Não saberia dizer.

O fato era que não chorava. E já tinha um tempo. Um longuíssimo tempo.

- Já... Já faz um tempo. – Hesitante, ela não sabia se alguém responderia ou mesmo se alguém ouviria.

- Você se lembra?

Lembrar? Ela não se lembrava de muita coisa.
Lembrava dos muitos mortos que enterrara ao longo da vida, lembrava dos gritos mudos por atenção que emitia todos os dias, lembrava dessas coisas, mas não devia ser isso, não tinha ligação alguma.

Saiu daquela nostalgia e olhou o reflexo que ainda sorria sutilmente, olhando pra ela, mas não era ela.

- Estou louca não estou? Falando com um espelho sobre coisas sem sentido.

Não houve resposta.

- Acabou então? Se eu não me lembro do que você quer que eu lembre, você não fala comigo? É assim, vai me ignorar? Mesmo eu sendo você.

Ainda silêncio. O reflexo continuava sorrindo.

Pareceu um estalo no meio do seu cérebro, mas foi só a impressão. Ela se lembrava, afinal.
Há quanto tempo não chorava? Há muito tempo, sem dúvidas.
E quando não se chora mais, quando essa capacidade era perdida, justo essa que era a única forma com que conseguia demonstrar suas emoções, então ela sabia que tinha acabado.
Lembrava-se que quando não podia chorar, ela devia morrer.
De um jeito ou de outro, nas outras vezes sobrevivera, mas não tinha certeza se seria assim agora. Nunca falara consigo mesma desse jeito antes.
Mas era isso.

- Sim, me lembro.

Alguns segundos de silêncio. O reflexo abriu um sorriso mais largo. Levando a mão para trás, trouxe uma corda e estendeu para que ela pegasse.
Ela duvidou, mas foi passageiro. Pegou a corda. Não houve efeito especial como no cinema, ou faíscas, foi como pegar algo de outra pessoa de carne e osso.
O reflexo lhe deu mais um sorriso.

- Você sabe como fazer.

E ela sabia. Fez um nó com perfeição, rápida, ágil, sem perder tempo. Pegou a cadeira almofadada do computador e usou para subir e abrir uma pequena portinhola no teto, no canto, perto da janela. Teve que se esforçar para amarrar a corda numa viga, ajeitar o nó... Em quarenta minutos estava tudo pronto.

- Bilhetes suicidas são para os fracos.

Já estava com a “corda no pescoço” literalmente quando viu que o reflexo não estava mais lá, e agora não importava, não queria saber se fora alucinação ou não, só queria acabar com tudo aquilo.
Um pulo.
O escuro e a altura fizeram com que não quebrasse o pescoço, mas que sufocasse até a morte.

Amanhecendo, por volta das sete, uma moça de vinte ou vinte e cinco anos é encontrada morta em sua cama.
Motivo?
Fé.
Uma bíblia foi encontrada embaixo da cama e no pescoço, sua “causa mortis”: um rosário que se enrolara com perfeição fazendo com que ela morresse por asfixia mecânica.
No criado mudo alguns remédios para dormir e uma nota que só dizia:

“Há quanto tempo você não chora?”