(...) Desenfaixaram minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,

No entanto sou a mesma, idêntica mulher. (...)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Ser desobediente aos parâmetros da sociedade


Ele as formara no decorrer de muitos anos, pena por pena, músculo por músculo, articulação por articulação, nas longas horas do trabalho do sonho, até que elas foram assumindo cada vez mais sua forma. Ele fizera com que elas brotassem no lugar correto, em suas omoplatas (foi muito difícil para ele, distinguir em sonho as próprias costas de maneira exata) e, pouco a pouco, aprendera a movê-las convenientemente. Sua paciência passara por uma dura prova ao continuar com o exercício até que, após infinitas tentativas mal-sucedidas, ele esteve em condições de, pela primeira vez, erguer-se no ar durante um curto lapso de tempo. Graças à cega amizade e rigor com que seu pai o conduziu, ele ganhou então confiança em sua obra. Com o decorrer do tempo, ele acostumara-se tanto com suas asas que passou a vivenciá-las como parte de seu próprio corpo, de tal modo que chegava a sentir dor ou bem-estar nelas. Por fim, acabou por apagar da lembrança os anos que passara sem asas: era como se elas houvessem nascido com ele, como seus olhos ou mãos. Ele estava pronto.

Não era proibido de maneira alguma sair do labirinto. Pelo contrário: aquele que conseguia, era visto como um herói, como um redimido, e durante muito tempo as pessoas contavam sua saga. No entanto, isso só era permitido aos felizes. As leis às quais estavam sujeitos todos os habitantes do labirinto eram paradoxais, mas irrevogáveis. Uma das principais rezava que somente aquele que sair do labirinto poderá ser feliz, entretanto só poderá escapar dele quem for feliz.

Mas foram raras as pessoas felizes no decorrer dos milênios. Quem estivesse pronto para se arriscar à tentativa deveria, antes, se submeter a uma prova. Se a pessoa não passasse na prova, não seria punida, mas sim seu mestre. E a punição era dura e terrível. Naquele dia, o rosto de seu pai ficara bem sério ao lhe dizer:

– Esse tipo de asas só suporta aqueles que sejam leves. Mas só a felicidade deixa alguém leve. – Depois, contemplou o filho durante um longo tempo com um olhar interrogador e, finalmente, perguntou: – Você é feliz?

– Sim, pai, sou feliz – fora sua resposta.

Ah, se assim fosse, então não haveria perigo algum! Ele era tão feliz que achava que poderia flutuar mesmo sem asas: ele estava amando. Ele amava com todo o fervor de seu coração de jovem. Amava com abandono e sem qualquer sombra de dúvida. E sabia que seu amor seria correspondido igual e incondicionalmente. Sabia que a amada estava esperando por ele, que no fim do dia – após passar na prova –, iria encontrá-la em seu quarto azul-celeste, quando ela se aninharia em seus braços, leve como um raio de lua, e eles se ergueriam sobre a cidade nesse abraço infinito e deixariam seus muros para trás, como se fossem um brinquedo para o qual já estivessem crescidos demais. Voariam sobre outras cidades, sobre bosques e desertos, montanhas e mares, cada vez para mais longe, até as fronteiras do mundo.

Sobre o corpo nu, ele nada portava além de uma rede de pescador, a qual se arrastava como uma longa cauda pelas ruas e vielas, corredores e quartos. Era assim que ele queria o cerimonial nessa última e decisiva prova. Ele tinha certeza de que iria cumprir a tarefa que lhe fosse apresentada, apesar de não a conhecer. Ele sabia apenas que tal tarefa sempre correspondia por completo à particularidade do examinando. Assim, nenhuma prova se assemelhava à de outra pessoa. Podia-se dizer que a tarefa consistia em adivinhar, com base no verdadeiro autoconhecimento, no que consistia a própria tarefa. A única disposição rigorosa que ele deveria seguir rezava que, em nenhuma circunstância durante o curso da prova (portanto, até o pôr-do-sol), ele teria permissão para entrar no quarto azul-celeste da amada. Caso contrário, seria imediatamente desclassificado.

Ele sorriu em seu íntimo da severidade quase colérica com que seu venerado e bondoso pai lhe comunicara essa disposição. Ele não estava sentindo a mínima tentação de transgredi-la. Isso não representava nenhum perigo para ele; nesse ponto, estava despreocupado.

No fundo, ele jamais pudera compreender todas essas histórias, nas quais uma pessoa  sentia-se terrivelmente impelida a violar uma disposição desse tipo. Em sua marcha através das desconcertantes ruas e prédios da cidade-labirinto, várias vezes ele já havia passado por aquele edifício em forma de torre, em cujo andar superior, próximo do telhado, morava a amada, sendo que por duas vezes chegara diante da porta dela, na qual estava o número 401. E nessas ocasiões ele passara de lado, sem ao menos parar. Mas isso não podia ser a própria prova. Ela seria fácil demais, muito fácil.

Por toda parte, onde quer que ele chegasse, encontrava pessoas infelizes, que o contemplavam com olhos admirados, ansiosos ou também invejosos. Ele conhecia muitos deles de tempos atrás, embora esses encontros jamais pudessem ocorrer de maneira intencional. Na cidade-labirinto, a situação e disposição das casas e ruas transformavam-se ininterruptamente, o que tornava impossível marcar encontros. Todo e qualquer encontro ocorria por acaso ou por fatalidade – conforme a pessoa quisesse interpretá-lo.

Uma vez, o filho observou que a rede que se arrastava atrás dele havia sido segurada e ele se virou, Viu então sentado sob um arco de portão um mendigo entrelaçando uma de suas muletas na malha da rede.

– Que está fazendo? – perguntou ele.

– Tenha piedade! – respondeu o mendigo com voz rouca de emoção. – Não vai lhe incomodar nem um pouco, mas vai me facilitar em muito. Você é um feliz e escapará do labirinto. Mas eu ficarei aqui para sempre, pois nunca serei feliz. Por isso eu lhe peço, leve consigo pelo menos uma pequena parcela da minha infelicidade. Assim eu também poderei participar pelo menos um pouquinho da sua escapada. Isto me serviria de consolo.

As pessoas felizes raramente são impiedosas: pelo contrário, geralmente tendem à compaixão e querem que os outros participem de sua abastança.

– Está bem – disse o filho –, fico contente por poder fazer-lhe um favor com tão pouco.

Já na esquina seguinte ele encontrou uma aflita mãe vestida com farrapos e com três filhos semifamintos.

Certamente você não nos recusará – disse ela cheia de ódio – o que já concedeu para aquele lá.

E entrelaçou na rede uma pequena cruz de ferro, retirada de um túmulo.

A partir desse momento, a rede foi ficando cada vez mais e mais pesada. Havia um sem número de infelizes pela cidade-labirinto e todos aqueles que se encontravam com o filho entrelaçavam algo de seu na rede, um sapato ou uma jóia valiosa, um balde de lata ou um saco cheio de dinheiro, um pedaço de roupa ou um fogão de ferro, um rosário ou um animal morto, uma ferramenta ou, até mesmo, um batente de porta.

O dia já caminhava para a tardinha e, com isso, para o fim da prova. O filho avançava passo a passo, curvado para a frente, como se estivesse caminhando contra uma violenta tempestade imperceptível. Seu rosto estava coberto de suor, mas ainda assim cheio de esperança, pois agora ele achava ter compreendido em que consistia sua tarefa e, apesar de tudo, ele sentia-se forte o bastante para cumpri-la até o fim.

Caiu então o crepúsculo e, mesmo assim, não chegava ninguém para lhe dizer que bastava. Sem saber como, carregando aquele fardo infinito que arrastava atrás de si, ele chegou ao terraço daquela casa em forma de torre, em cujo quarto azul-celeste encontrava-se sua amada. Ele nunca havia notado que dali se via lá embaixo uma praia. Talvez ela não se encontrasse antes naquele lugar em que estava agora. Preocupado até o fundo de sua alma, o filho percebeu que o sol submergia por trás do horizonte enevoado.

Quatro seres alados como ele encontravam-se na praia e, apesar de não poder ver as pessoas que conversavam, ele ouviu claramente os quatro serem liberados. Ele gritou para baixo, perguntando se haviam esquecido dele, mas ninguém prestou atenção. Ele remexeu a rede com mãos trêmulas, mas não conseguiu livrar-se dela. Gritou, repetidas vezes, agora chamando seu pai, pedindo que viesse lhe ajudar e, enquanto gritava, curvou-se tanto quanto pôde sobre o peitoril.

Na última luz do dia que se apagava, ele viu sua amada lá embaixo, sendo levada para fora da porta, envolta em um véu negro. Nesse momento, apareceu um coche puxado por dois alazões, com um teto que era um único retrato grande, o rosto de seu pai cheio de tristeza e desespero. A amada entrou no coche e o veículo se afastou, até desaparecer na escuridão.
Nesse momento, o filho compreendeu que sua prova havia consistido em ser desobediente e que ele não havia realizado tal tarefa. Ele sentiu murcharem suas asas produzidas em sonho, caindo no chão qual folhas de outono, e percebeu que nunca mais iria voar e que nunca mais poder-ia ser feliz de novo e que, por mais que durasse sua vida, ele continuaria no labirinto pois, agora, era parte dele.
Vamos pensar sobre esse texto retirado do livro "O Espelho no Espelho" de Michael Ende (isso, o mesmo de História Sem Fim)

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